2013/09/28

Berlim cai...


... na sua própria armadilha

No primeiro semestre de 2014, vai ser a Grécia a assumir a presidência rotativa da União Europeia. Um dos assuntos a enfrentar será a avaliação da situação económica dos Estados-membros. Há um país que pode ver-se em situação de desequilíbrio: a Alemanha... devido aos valores das exportações.
Passada a trégua das eleições, o Governo alemão vai ter de encarar duas grandes questões europeias.
O resgate adicional à Grécia não deve criar grandes dificuldades. Em compensação, por casualidade do calendário europeu, a Grécia assume a presidência da União Europeia no primeiro semestre de 2014 e celebra, no dia 24 de julho, 40 anos do fim da ditadura militar.
Como o Governo grego não tem a credibilidade necessária para assumir um projeto económico para a União, a sua presidência será sobretudo política. Atenas vai reunir uma cimeira União Europeia – Balcãs Ocidentais, designada “Salónica II”. O objetivo é a adoção de uma declaração política que defina um prazo, “ambicioso, mas realista”, para a conclusão do processo de adesão dos países dos Balcãs Ocidentais à União Europeia.
A questão é, obviamente, decisiva a nível regional para a Grécia: apesar de colada ao continente europeu, só tem fronteiras terrestres com a União Europeia na Bulgária. Permanece isolada a sudeste. A integração dos Balcãs permitiria reequilibrar a Europa e consolidar a transição democrática desses países. Mas a Alemanha não pode andar mais tempo com o assunto às voltas. O seu Governo vai ter de explicar à população a necessidade de, apesar dos riscos económicos, validar o calendário de alargamento da União.
Um exame aprofundado
A segunda questão é muito mais imediata. Desde a introdução do “six-pack” (as seis regras para fortalecer o Pacto de Estabilidade Europeu), em finais de 2011, há outros valores fundadores para o controlo tecnocrático da União, em particular na zona euro. É o caso dos famosos 3% do produto interno bruto (PIB) de limite para o défice das contas públicas e dos 60% da dívida pública, inscritos no Tratado de Maastricht, e dos 0,5% de défice estrutural incluídos no pacto fiscal.
Assim, todos os outonos, a Comissão faz um diagnóstico dos desequilíbrios macroeconómicos nos países da União, com base numa bateria... de onze indicadores! Para cada um deles, é definida uma série de parâmetros; se o indicador estiver fora do intervalo definido, constata-se o desequilíbrio. É bom que se diga: estes intervalos, bem como os critérios de Maastricht, não têm na base nenhuns pressupostos económicos sólidos.
Um primeiro exame determina, então, quais os países em desequilíbrio. O agravamento desses desequilíbrios pode, num segundo momento, desencadear um “exame aprofundado”.
Em novembro de 2012, treze países da União Europeia, incluindo a França e o Reino Unido foram declarados em desequilíbrio
Em novembro de 2012, treze países da União Europeia, incluindo a França e o Reino Unido foram declarados em desequilíbrio. Mas, no relatório da primavera, naquilo que se chama o “semestre europeu”, o desequilíbrio destes dois países não foi considerado “excessivo”, ao contrário do da Espanha. Ufa! É que os países com desequilíbrio “excessivo” devem adotar as medidas corretivas propostas pela Comissão Europeia.
Na sequência de dois avisos, podem sofrer uma alta penalização financeira, de 0,1% do PIB. Quanto aos países em desequilíbrio não excessivo, são fortemente incentivados a seguir as recomendações da Comissão.
Impossível distorcer os números
A Alemanha nunca foi declarada em desequilíbrio, mas escapou por pouco. Porque um dos critérios é o saldo da conta corrente externa: deve, numa média móvel de três anos, não ficar em défice superior a 4% do PIB, mas também não pode exceder os 6% do PIB.
Este segundo valor é, na verdade, uma concessão à Alemanha, grande exportadora. Angela Merkel considerou que a purga imposta aos países periféricos da Europa manteria o saldo germânico abaixo dos 6%, um valor já bastante alto.
Assim, a Alemanha não seria acusada de ser demasiado competitiva, ao ponto de desestabilizar a União, e seriam os outros países a ser apontados como não suficientemente competitivos: plasma-se aqui o discurso central da Comissão desde o início da crise.
Mas eis que – catrapimba – a Alemanha exporta cada vez mais! A decisão tomada foi para que se “ajeitassem” os valores provisórios transmitidos ao Eurostat. Milagre, a média móvel calculada pela Comissão no outono de 2012 foi de... 5,9%! A Alemanha não ficou, portanto, em desequilíbrio macroeconómico... Logo os dados definitivos, publicados na primavera de 2013, manifestam uma média de 6,1%. Mas já era tarde demais: o semestre europeu tinha começado e a Alemanha estava já em campanha eleitoral.
Tudo isto demonstra o absurdo de um acompanhamento automático numérico
Tudo isto demonstra o absurdo de um acompanhamento automático numérico: o diagnóstico pode ser diferente quando se disponibilizam os dados finais. E o que acontece se um país for sancionado com base em estatísticas que afinal se prova estarem erradas?
Entretanto, os excedentes alemães aumentaram. Já não é possível distorcer os números, que se vão situar entre 6,4% e 6,6% do PIB, no período de 2010-2012. A Alemanha foi, assim, apanhada na sua própria armadilha, tal como a Comissão Europeia.
A ditadura dos números devia permitir a imposição de reformas a quaisquer povos, com o argumento de haver um bom aluno alemão. É difícil imaginar que gregos, franceses ou espanhóis possam suportar, a poucos meses das eleições europeias, um salvo-conduto para a Alemanha.

Philippe Askenazy - Traduzido por Ana Cardoso Pires


2013/09/24

Alternativas

Aqui fica parte da introdução do livro "A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes" (Edições Tinta da China).



“Como veremos adiante, se é verdade que não faltam exemplos de má governação no passado recente, as condições que conduziram à crise começaram a avolumar-se há duas décadas, fruto da conjugação de uma integração europeia disfuncional, de alterações significativas no contexto global e de fragilidades estruturais da economia e da sociedade portuguesas. Tais condições foram agudizadas pela crise financeira internacional de 2008 -2009, cujos efeitos se fizeram sentir em diferentes países do mundo, mas que afetaram de modo mais acentuado economias que apresentavam à partida maiores fragilidades. Assim sendo, é difícil sustentar que foram essencialmente os erros das governações anteriores – que existiram e não devem deixar de ser apontados – que nos conduziram à crise e ao recurso à assistência financeira externa.
Quanto à ideia de que andámos a viver acima das nossas possibilidades, simplesmente não se aplica à grande maioria das famílias portuguesas. De facto, em 2010, cerca de 63 por cento das famílias não tinham qualquer dívida aos bancos ou a outras instituições financeiras. A minoria que acede ao crédito em Portugal tem por objetivo a aquisição de casa própria (o crédito para consumo é residual), sendo quase sempre caracterizada por condições socioeconómicas acima da média (como é sabido, o acesso ao crédito é tipicamente dificultado pelos bancos quando se trata de trabalhadores de baixos rendimentos ou precários, estudantes, pensionistas, ou famílias monoparentais ou com desempregados). A demonstração disso é que os níveis de incumprimento no pagamento de empréstimos por parte das famílias têm sido historicamente reduzidos (a taxa de incumprimento aumentou para 6,6 por cento em 2012, um valor superior aos 4,4 por cento registados em 2008, mas ainda assim modesto).
...
A combinação da denúncia e da proposta constitui um elemento fundamental da intervenção do Congresso Democrático das Alternativas, no seio do qual surgiu o projeto do presente livro. O Congresso afirma-se hoje como um movimento cívico de intervenção política não-partidária, que reúne cidadãos de diferentes orientações políticas, com e sem partido, visando a construção de denominadores comuns nas opções de política pública e nos processos de ação coletiva que fundamentem, dêem força e credibilizem alternativas políticas de governação. A expectativa dos autores é que este livro contribua ainda para gerar as convergências e a mobilização cívica necessárias para resgatar Portugal para um futuro decente.”

* "A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes" - Alexandre Abreu, Hugo Mendes, João Rodrigues, José Guilherme Gusmão, Nuno Serra, Nuno Teles, Pedro Delgado Alves, Ricardo Paes Mamede - (Edições Tinta da China) - Em venda com a edição portuguesa do "Le Monde Diplomatique" de Setembro.